segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
O Amor
Cap. 4
O Amor
Alguns minutos após começarem sua conversa, ignorando o desagradável assunto sobre o culpado pelo confinamento dos Deuses da Fortuna sumidos, Manisha se volta à porta do corredor da sala de estar e sorri. O seu marido aparece logo atrás da borboleta humana, que cumprimenta os convidados e assume a sua real forma para voar da saída afora. Preetish é um homem atraente, com curtos e lisos cabelos castanhos de tom claro.
Alguns fios da franja partida no meio recaem suavemente sobre seus olhos rubros, contrastando com a delicadeza da pele clara e dedos finos. Embora seu corpo pareça um tanto feminino, sua postura retrata firmeza masculina pelos ombros largos e o peito liso e forte, exposto no leve decair do seu quimono estilo samurai: branco por dentro, azul claro por fora e amarrado com uma faixa cor índigo. Ele senta numa almofada no chão.
Às suas costas, o repentino vento joga algumas pétalas de flores de cerejeira para dentro do cômodo, pela janela circular meio gradeada. Olhando os recém-chegados, o deus puxa a faixa da roupa e sobe a manga direita que estava caindo.
- Olá. – os demais retribuem seu cumprimento – Já faz muito tempo. Como estão?
- Bem. – Kofuku responde – Mani-chin disse que vocês têm uma afilhada agora.
- Ah sim, nós temos. – o casal se entreolha sorrindo, então ele coloca um pouco de chá na xícara a sua frente e bebe um gole – Ela é uma garota muito especial.
- Finalmente um dos dois quis fazer contrato com uma Shinki? – Daikoku sorri.
- Oh, ela não é nossa Shinki. – Preetish informa de olhos fechados, bebericando – Embora queiramos, por ser mais vantajoso para ela.
- O que querem dizer? – Bishamonten franze o cenho – Estão com uma alma pura e não pretendem fazer um contrato com ela? Isso é extremamente perigoso!
- Nós sabemos. – Manisha suspira – Ela é uma menina teimosa. Já lhe dissemos que existem riscos se quiser continuar vivendo livremente, pois se ceder às tentações do mundo humano pode até perder o direito de reencarnar, mas ela não escuta!
- Ela prefere ser castigada por suas ações a ser nossa Shinki, mesmo sabendo que nunca a trataríamos como uma escrava ou arma. Seu coração está preso a uma angústia do passado, um medo do qual se lembra em quase todas as noites.
- Detestamos vê-la assim, mas não podemos obriga-la a aceitar um de nós. Isso só me deixa mais aflita, pois como deusa da mente eu gostaria de poder apagar suas tristes memórias! Nem eu tenho essa habilidade!
- Calma querida. – seu esposo segura sua mão, o que a faz tomar fôlego.
- Então resolveram trazê-la para cá... – Tenjin pensa – É compreensível, uma vez que todos os espíritos da Floresta das Almas os respeitam e os Ayakashis os temem. Por que simpatizaram com ela? O que esta menina tem de tão especial?
- Bem, ela nos libertou. – a deusa relata, fazendo os outros ficarem surpresos – O selo não tinha nada de tão impressionante, de fato, excerto pelo detalhe que notamos de não poder ser removido por nenhum deus ou Shinki. Apenas uma alma intocada podia nos tirar daquele confinamento, então conhecemos Acácia.
- O nome dela é “Acácia”? – Yukine repete curioso – É um nome... Diferente.
- Um pouco. – ela acena em acordo – Acácia tem todas as memórias da sua antiga vida, que certamente não deve ter sido fácil. Eu não consegui saber muito sobre ela, pois meu poder apenas permite uma aproximação sutil de seus pensamentos. Ela se esconde até mesmo das próprias lembranças, mas muitas retornam durante a noite, e quando fica pálida e desperta apavorada na madrugada é o único momento em que consigo ler a sua conturbada mente. Acácia foi abandonada pela mãe e viveu cercada por crianças cruéis num orfanato. Ela foi queimada viva num incêndio no dia do décimo quinto aniversário. – as visitas se amedrontam com a notícia e fazem expressões de desgosto e compaixão.
- Acácia tinha acabado de entrar no Plano Espiritual, a nossa “margem” ou como preferirem chamar, quando nos achou e libertou. – Preetish continua – Sua alma tomou a forma conhecida da aparência de uma semente de dente-de-leão, o que claramente já demonstrava a fragilidade do seu espírito, mas sozinha ela assumiu a imagem humana.
- Então ela tem muita força de vontade. – Tsuyu sorri, obtendo sorrisos em troca.
- Com certeza tem. – Manisha suspira – Aquela borboletinha se recusa a ceder aos seus empecilhos de vida, o que é admirável! Até mesmo deuses não são tão resistentes.
- Está falando da explicação que deu sobre o significado da vida, não é?!
- Sim, senhorita Hiyori. – a mulher se volta ao marido – Eu mostrei a eles todos os símbolos do nosso santuário. – ele acena em compreensão e vira-se para a jovem.
- Você é humana, certo senhorita?! – o deus aponta para a cauda de gato e ela ri de nervoso – Não se preocupe, seu segredo está seguro conosco. Embora eu ache que não é bem um segredo, considerando a quantidade de pessoas aqui presentes.
- É um segredo exclusivo. – Yato justifica, sorrindo de lado.
- Entendo... Bom, eu imagino que deve haver circunstâncias interessantes para sua alma escapar com tanta facilidade do corpo. Humanos em estado de sonolência ou coma não liberam a alma e sim o espírito, a projeção astral dos seus sentimentos, por alguns minutos, talvez horas. Mesmo assim, ele tem dificuldade de captar com tanta clareza o que sente antes de retornar para o corpo.
- Ah... Sim, bem... É... – Hiyori desvia o olhar, remexendo as mãos.
- Ela me salvou de ser atropelado por um caminhão. – o ex-deus da calamidade se pronuncia – Embora eu realmente não fosse morrer por isso.
- Oh! – a deusa da mente e do desejo sorri surpresa, fitando-a como o esposo – De fato, que admirável! Nem todos assumem riscos tão heroicos.
- Não é pra tanto! – a moça abana a mão direita e faz uma careta – Se eu soubesse que o Yato ia me meter em tanta encrenca, teria deixado o caminhão atropelar ele.
- O QUÊ? – o rapaz berra nervoso – Hiyori, não pode estar falando sério!
- Pode ser que sim... – ela sorri enigmática, fazendo-o ficar com cara de choro, e logo ri – É brincadeira, seu idiota! Não faça esta cara!
- Bebê chorão. – a regalia loira sussurra, disfarçando com um assovio quando seu mestre o encara, e as atitudes provocam risadas nos anfitriões.
- Hilário! – Preetish olha para o Shinki – Vocês trabalham juntos?
- Sim. Eu sou o Instrumento Abençoado deste deus pobre desconhecido, Yukine.
- Yukine, não fale assim de mim! – Yato resmunga emburrado.
- Surpreendente! Tão jovem e tão talentoso... Esse status é muito cobiçado entre Shinkis e deuses. É necessário muita coragem e respeito para alcança-lo, com um ato de heroísmo. Creio que, apesar das brincadeiras, você goste do seu parceiro. – Yukine vê o olhar esperançoso de elogio ao seu lado e bufa, virando o rosto corado e concordando, e então começa a reclamar com o repentino abraço do pegajoso deus – Isso é bom. Com o fardo que deuses precisam carregar, sobre as memórias pesarosas de seus Shinkis, essas trocas de confiança são essenciais para manter laços. Acredito que saibam de tudo isso. – todos acenam em confirmação – Poupa explicações. O que disse a eles, Manisha?
- Não muito, mas talvez agora possamos explicar melhor aos outros sobre a vida.
- Certo... Algum de vocês quer fazer uma pergunta?
- Eu quero! – Hiyori levanta a mão – A Manisha-sama nos disse que “os deuses cuidam do tear que tece a linha da vida”, mas e a vida de vocês? Já que reencarnam em pouco tempo, por que precisam se preocupar com seus pecados?
- Não é simples como você deve imaginar. – o deus do amor olha de soslaio pras demais divindades – Nosso tempo de vida não é infinito, embora tenhamos o privilégio de viver bastante. Esta benção é cedida exclusivamente aos poucos seres que em outra encarnação seguiram o caminho da luz, pois ganharam o direito de prolongar seu tempo no Plano dos Vivos, mas somos tão sujeitos as leis da natureza de causa e efeito quanto qualquer outro ser no universo. Temos o nosso próprio destino para seguir, aceitando ou mudando a trilha durante o percurso, então não sabemos tudo que há para saber e muito menos estamos imunes às imperfeições dos reinos moral e mental.
- Isso torna este nosso presente de longevidade ainda mais sagrado, pois se não o respeitarmos até o fim aproximar-se novamente, na ressureição seremos castigados com opressões de vidas miseráveis. – sua companheira complementa – Podemos nascer logo se morrermos antes de completar nosso papel como deuses e não seguirmos às trevas.
- Então... – a jovem franze o cenho ao raciocinar, gesticulando no processo – Se eu entendi bem, você está dizendo que eu posso renascer noutra vida como uma deusa, ou algo parecido? Quer dizer, como vocês?
- Se merecer seu dom, sim. – Manisha sorri gentilmente, parecendo disposta a dar continuidade à explicação – Todos os vivos têm a mesma oportunidade.
- E os deuses que nasceram do desejo da humanidade? – Yato questiona curioso.
- Humanos não têm poder para criar uma vida, apenas gerá-la. Vocês se iludem ao pensar que dependem sempre da lembrança dos vivos para viverem seu tempo. Nenhum deus ou deusa nasce do vazio, pois o desejo mundano só realiza o renascimento de um ser outrora já vivo com poder além do imaginado.
- Quer dizer que Yato e os outros deuses já foram humanos, como os Shinkis?
- Exatamente, senhorita Hiyori. – Preetish deixa a surpresa se apossar de todos por um tempo, logo retomando a palavra – Um dia foi. É difícil dizer ao certo quando, já que ninguém se lembra de seu passado ao renascer.
- Mas... – Yukine cerra seu olhar por receio, recebendo a atenção de todos – Os deuses sabem o passado dos seus Shinkis. Como isso é possível então? – os convidados apreensivos observam o anfitrião servir mais uma xícara de chá à esposa, fechando os olhos momentaneamente antes de falar.
- De fato. O maior segredo dos deuses benevolentes, lacrado no silêncio pelo bem de seus companheiros, nós conhecemos bem. – ele suspira, tomando outro gole da sua própria bebida – Shinkis nada mais são do que almas presas entre o Plano dos Vivos e o Espiritual, por isso há a possibilidade de um deus conhecer o passado da arma divina ao tomar o último fio da existência desse ser para si. Todavia, a razão disso precisar ser um segredo é porque a única coisa que prende a alma do Shinki no limite dos dois mundos é um assunto inacabado. A alma de um ex-vivo assume uma forma qualquer para vagar no plano antigo ao qual pertenceu por um tempo, como “fantasma”, tal qual rotulam os humanos, até resolver o problema pendente.
- E essas almas emanam seu desejo de encerrar os assuntos pendentes com muita intensidade às vezes. – a deusa da mente e do desejo interrompe depressa – No início a sua alma é pura, mas pode ficar corrompida se o espírito, que é movido por boas e más emoções, se tornar maligno. Em outras palavras, se você praticar boas ações, o espírito é bom e sua alma fica em paz. – alguns presentes torcem os narizes por confusão.
- Como exemplo, basta pensarem numa árvore. – seu marido auxilia – Ela só tem sustento se as raízes conseguirem retirar bons nutrientes do solo, se não, com o tempo, a árvore apodrece. O espírito de uma pessoa amargurada pode manchar sua alma e fazê-la rondar o mundo dos vivos com intenções malignas.
- Por isso quem consegue ver espíritos tem a facilidade de encontrar os malignos, pois o desejo das almas corrompidas é mais forte! – Manisha retoma o raciocínio – Elas podem emitir uma aura, e a cor da aura determina os sentimentos que tomam o espírito. É a razão de os deuses precisarem ser rápidos ao tomar um Shinki, assim normalmente escolhendo almas recém-chegadas ao Plano Espiritual, pois se os fantasmas concluírem seu ressentimento deixado para trás podem desprender-se da sua vida antiga e aceitar o renascimento. O efeito similar ocorre se o nome da arma divina for mencionado, porque lhe causará a recordação das mágoas abandonadas a contragosto.
- Infelizmente, isso força o Shinki a renascer, então as dores não resolvidas geram uma obscuridade que a alma levará consigo na próxima encarnação. – o deus do amor tosse de leve – Dessa forma, a vida desse ser termina fadada a tragédia, dependendo da intensidade do rancor guardado desde a outra vida. Nessa circunstância, vocês entendem a razão pela qual os únicos seres capazes de alcançar o dom da divindade, a forma mais extensa e limitadamente poderosa de uma existência mundana, são os que obtiveram a plenitude da satisfação de uma vida simples e iluminada por gentileza, coragem e amor.
- Mas nós não podemos saber o que seremos ao renascer, ainda sendo capazes de determinar quem nos tornaremos, e nem temos conhecimento de nossas vidas passadas, tornando perfeito este ciclo misterioso entre os mundos. – sua esposa entrelaça os dedos – Se soubéssemos muito, teria quem aspirasse manipular seu destino, como se brincasse de criar vidas. A simples menção de um jogo doentio como este é um tabu, na verdade.
- São muitas informações de uma vez só! – Hiyori massageia as têmporas – É um pouco confuso de entender, admito, mas é possível dizer com isso tudo que, me usando como exemplo: se eu for uma boa pessoa nesta vida, tenho a chance de renascer como deusa na próxima encarnação, mas isso também depende dos humanos?
- Exato! – a anfitriã confirma, fazendo-a soltar um suspiro de alívio que provoca a risada dos demais – Para ser mais precisa, se você morrer sem arrependimentos, tendo tido uma vida boa e honrosa, irá completar o ciclo diretamente, sem correr o risco de virar uma alma vagante entre os planos e assim também a Shinki de um deus ou deusa. Como não há maneiras de saber quando e se acontecerá, digamos que na sua próxima encarnação você se tornará uma deusa. Lembrando que esta condição é só um privilégio pouco superior ao da condição humana, seu renascimento depende da necessidade dos seres humanos. É um pouco cruel dizer que o desespero deles, motivando-os a orar por intervenções divinas, funciona como o estopim para justificar seu dom, seja ele qual for, porém, os diferentes tipos de deuses surgem justamente de diferentes desejos mundanos.
Enquanto a conversa se desenrola, do quarto isolado no topo da única árvore oca do templo sai uma linda moça. Ela desce as escadas e passa pelo torii até o aposento de baixo, procurando pelos deuses do domínio. Não os encontrando, a jovem caminha pelo corredor na direção da sala de estar, sem fazer ideia das visitas que chegaram.
Continua...
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